quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Rum e tirania


Brrr, Havana é feia e suja. Não nos recebe bem: logo de chegada, a brisa caribenha agarra-nos pelo pescoço e suga-nos água do corpo. Cubanos agrupam-se à saída do aeroporto, curiosos. Esperam por ninguém, apenas por caras novas. Muitos deles serenos, de cigarro a descansar no canto dos lábios. Agarro as malas e apanho o autocarro. Toca "Hearts And Bones" de Paul Simon enquanto folheio a Newsweek. Artigo de Fareed Zakaria, ídolo pessoal, sobre a convergência de ideias na consciência de Barack Obama. Divaga-se sobre utopia ou idealismo desmesurado, coisa que não falta neste país que visito. Chego ao hotel ao fim da tarde. A poucos metros dali, pescadores sentam-se num interminável muro que cerca o mar, pescando nada por um fio preso ao dedo indicador. Reparo em três mulheres sentadas no chão em semi-lua, ventoínha portátil ao centro. Já se respira tecnologia. Raúl Castro tem o coração mole.

La ración es nuestro escudo. 55 anos de Revolução Cubana. Na TV (estatal, obviamente), transmite-se os festejos. O povo de vermelho, velho. De vez em quando, urram e agitam bandeiras. Autênticas máquinas. Festa exemplar. Há demonstrações teatrais frouxas, recitais dignos de bocejo. Testemunhos, até daqueles que não viveram '53. A demagogia reina. Corações apontados às palavras. Daí que seja um dia de discursos, onde a ideologia evoca heroísmos e mártires ("Pátria ou morte", o tanas é que há dúvidas). "Vitória das ideias" inscrito numa fotografia titânica de Fidel. Anoitece. O público está dormente. Uma menina aproxima-se do palco. Dão-lhe um microfone para se fazer ouvir. Cabelo desleixadamente preso, shorts cor-de-rosa, ombros nus, sobrancelhas peludíssimas. Não sabe projectar a voz; pelo contrário, berra. Discursa enquanto chefe da sua turma da 4º classe; discursa com algum ímpeto, mesmo que não saiba que palavras lhe saem da boca. Raúl aplaude, perto do palco mas sem lugar de destaque (o socialismo assim o exige). Ironicamente, uma banda de rumba apresenta-se vestida de preto. Raúl surge logo depois para discursar. Enternecido, voz sonolenta. A retórica triunfa na audiência. Com a vaga de idealismo, arrasta milhões para o seu canto. Mais palavras. Desliguei. É por isso que tanto odeio o socialismo: aborrece-me. Vou à janela. Ninguém na rua. Ninguém que pense como eu. Estou sozinho.

La dignidad nunca se muere. As pessoas vivem de festejos, aqui. A chama de simpatia e compaixão é enorme. Não entendo: para além de pobres, vivem aprisionados nesta ilha. "Existirá mais mundo?", talvez se oiça em muitas conversas a rum tarde dentro. Fidel, homem do povo, de mãos manchadas de sangue do povo, fomentou a ignorância e parece ter oferecido almofadas a toda esta gente para perpetuar um sono conveniente. Jornais, nem vê-los. Vejo um espectáculo nocturno do hotel. Quanta decadência. Há um bailarino que se destaca, competente na forma como responde com o corpo ao crescendo de densidade da demonstração, mas a coreografia é pobre e a cacofonia da banda deprime. O que me salva é o mojito que vou beberricando. Saio dali, direito ao bar. Peço outro e reparo que a polaca que conheci na noite anterior está a conversar com um tipo baixo, de fato branco a constrastar com a pele bronzeada e camisa escura aberta a metade. Esforço-me por ignorar o meu lado esquerdo, onde ela está sentada a beber um Ron Collins; para isso, acompanho a preparação do mojito, a coisa menos interessante de que há memória. Pego no copo e sigo até à piscina, onde um grupo enorme de espanhóis ainda janta. No que toca a refeições, o relógio deles raramente funciona. Experimento deitar-me nas camas de madeira mas são incómodas. Acabo por ir parar à discoteca do hotel. Uma data de mesas, vazias, rodeia o espaço das bebidas, ornamentado de palmeiras e outros símbolos que é costume associar-se a um paraíso tropical. Meto conversa com o barman, chama-se Rey mas está bêbedo e atropela-se a contar histórias de turistas e da extrema generosidade que tem de demonstrar para com eles. Fala tão rápido que acabo por desligar o interesse e olho em redor constantemente para que ele perceba que a conversa não está a ser boa. Além disso, o ar condicionado está fortíssimo e o DJ parece insistir em reggaeton chunga. Digo-lhe que estou cansado, que vou dormir. Cumprimento-lhe a mão suada e saio já com outro mojito. Estou morto. A caminho do quarto, penso num pormenor curioso: enquanto que, lá dentro, a bebida e a música criam uma ilusão de êxtase e satisfação infindáveis, onde a vida não mais se extende para lá de uns quantos metros quadrados, partilhados por pessoas que estão a sentir exactamente o mesmo que nós, a realidade esbofeteia-nos cá fora, desoladora, acordando-nos. Havana é assim. Mas, por agora, Havana não quer despertar. Sentir dor. Vai fechando os olhos perante o seu declínio.

1 comentário:

Vitor Reis M disse...

esta escrita do Fábio é excelente e inteiramente "cinemática". parabéns.